Terceirizando a compaixão




Eu estava trabalhando em casa, quando soube de uma tragédia (naquelas escapadas para um site de notícias). Acho que orei rapidamente pela situação, mas precisava voltar ao trabalho. Senti-me culpado, a situação parecia pedir alguns minutos de luto, porém eu tinha muita coisa pra fazer. Agora admito, apesar de triste, eu não me importava tanto quanto sentia que deveria. Uma evidência disso, é que hoje já não consigo me lembrar que notícia era. Mas, naquela hora, frustrado com o acontecimento e, ao mesmo tempo, não reconhecendo a minha empatia limitada, eu tentei jogar a culpa para Deus num pensamento: “mas por que o Senhor permitiu isso, então?!”.

“Você quer se fazer de bom jogando a culpa pra mim?”, a resposta de Deus veio, imediata, num outro pensamento. Impossível ser mais certeiro. Eu tentei amenizar meu desconforto voltando-me para Aquele que era mais poderoso do que eu e, ainda assim, “não fez nada”. A resposta dEle desfez o engano logo em seu início e me deu a oportunidade de dizer: “Senhor, este sou eu com minha compaixão limitada. Eu sei que o Senhor se importa o bastante e tem poder para intervir nessa situação. Se desejas que eu faça mais do que orar, ajude-me a entender”.

Quero deixar claro que não acredito que Deus espere que nós vivamos em lamento por cada coisa ruim que venha sobre o mundo. Se fosse o caso, não haveria tempo para outra coisa que não para o choro e, é Ele mesmo quem diz que há tempo de chorar e tempo de sorrir (Ec. 3:4). É muito ingênuo acreditar que deveríamos (ou que poderíamos) “nos importar” com tudo. Algumas coisas serão mais importantes para nós do que outras, isso varia de pessoa para pessoa. Eu até acredito que as pessoas devem ter a liberdade de se importar ou não se importar com o que bem entendem, ainda que haja, sim, um sistema de valores absoluto ao qual devamos buscar nos alinhar, o do próprio Deus.

Mas o ponto desse texto é que eu não creio ser o único com a tendência de lançar nos ombros dos outros (e até de Deus) a compaixão que eu não sinto. As redes sociais dão uma mostra (irritante) disso.  Parece que todo mundo se importa muito com tudo e, por isso, estão sempre culpando alguém. Não estou tentando diminuir minha própria falha tornando-a um pecado universal, nem quero acusar pessoas indiscriminadamente. Feliz é você, se a carapuça não lhe servir. Mas quantas vezes você justificou a esmola que deixou de dar com o pensamento “Alguém deveria fazer alguma coisa sobre isso”? O alguém a quem acusamos pode ser o governo, a sociedade, a igreja, Deus. Você se afasta, sentindo que “se importa”, mas nem considerou que era aquela a única oportunidade de fazer algo por aquela pessoa. Claro, pode haver várias razões para não dar esmola. Você pode não querer sustentar um vício, você pode não ter dinheiro, você pode ter medo de ser assaltado e você também pode nem dar muita bola mesmo. Como a Dona Florinda e o Professor Girafales, discutindo o problema das crianças que não tem o que comer, enquanto comem um prato de biscoitos na frente do Chaves – e sem oferecer.

Ouvi uma vez, sobre o membro de uma igreja que, após o culto, ao ver alguns irmãos voltando de ônibus tarde da noite, perguntou indignado: “A kombi da igreja não poderia levar essas pessoas para casa?” Ao que o encarregado da kombi respondeu: “A kombi já está em serviço. Por que você não as leva no seu carro?”.

Se importar custa. E você não deveria jogar a conta para terceiros antes de estar, você mesmo, disposto a pagar. Não estou falando de deixar de responsabilizar quem é responsável. Ou deixar de pedir ajuda a quem tem poder para ajudar. O seu comprometimento é medido, no entanto, não pelo quanto você cobra, mas pelo quanto você está disposto a pagar. Tenho visto algumas pessoas pagarem caro, muitas vezes, silenciosa e solitariamente. Não porque não queiram ou não precisem de ajuda, mas porque assumiram aquela causa como sua responsabilidade pessoal. Já vi quem “discute a problemática da dependência química” e já vi quem tenta e consegue internar, até dezenas de vezes, a mesma pessoa. Já vi os que, de dentro da Igreja, a acusam de não se importar com os pobres e os que deixam família e conforto para anunciar o evangelho em aldeias e favelas.

Esses que pagam o preço são os últimos a engrossar o coro dos que “denunciam a omissão” de quem quer que seja. Talvez nem tanto por serem altruístas, quanto por estarem ocupados, realmente, fazendo alguma coisa. Algumas vezes, eles também precisam se desgastar com os que os denunciam por não se importarem com a causa A, em vez da B (aff!). Mas são essas, para mim, as pessoas de valor numa sociedade onde tanta gente “se importa” e onde há tantas causas pelas quais se importar. Depois delas, estão as pessoas que tem a honestidade de admitir que se importam demais consigo mesmas, ainda que não se possa apenas parar por aí.

Eu estaria mentindo se dissesse que a solução para essa questão não passa por Deus. A Bíblia diz que a Ele pertencem o poder – Ele é quem pode fazer qualquer coisa – e a misericórdia – ninguém se importa mais do que Ele (Sl. 62:11-12). Ainda assim, Ele não faz tudo o que as pessoas esperam que Ele faça e, como seres de poder e misericórdia muito limitados, seria sábio confiar em Suas decisões. E quanto à compaixão, sendo Ele a sua fonte, nós deveríamos buscá-lO para aprender a dar a medida adequada de importância a cada questão. Isso começa com admitir quando não nos importamos o bastante, já que Ele não se deixa enganar pelo nosso discurso.

Ah, e para quem leu até o final, de brinde, o trecho do episódio de Chaves.

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